domingo, 19 de junho de 2011

Lima na história da América Latina (por Enrique Amayo)



Segue trecho do excelente artigo: Lima na História da América Latina, de Enrique Amayo.

A importância colonial de Lima
Até o final do século 17, Lima foi a cidade principal do império espanhol. Em seguida foi a Cidade do México. E a importância de Lima se devia ao fato que ela era o centro controlador do gigantesco circuito comercial, baseado na mineração, cujo eixo era o complexo econômico formado pelas lendárias cidades de Potosi (na atual Bolívia) e Huancavelica, nos Andes do Sul do Peru. As quase inesgotáveis veias de prata e ouro do “Cerro Rico de Potosi” circulavam graças ao também inesgotável mercúrio da “Ciudad Vieja de Huancavelica”. O minério extraído, como a história ensina, foi em quantidade jamais imaginada por europeu algum. E isso foi feito literalmente queimando, nos fornos, 90% dos andinos. Sabe-se que um dos principais responsáveis pelo pior genocídio que a humanidade conhece (nos referimos à destruição da população indígena não só andina mas da América inteira) foi a economia mineira organizada pelos espanhóis. Essa economia, construída com a vida de milhões de homens, foi a determinante principal não só da “revolução dos preços” da Europa do século 16, mas também, e isto é o mais importante, da geração da acumulação primitiva (século 16 a 18), essencial para a gênese do capitalismo, capítulo central da história do Ocidente e mundial. E a Lima colonial desempenhava um papel chave nesse gigantesco processo extrator das riquezas da América pela Europa. São essas riquezas a base material que possibilitou construir a Era Moderna.
Paralelamente a esse processo se desenvolveu outro. É o que Luis Lumbreras chama de congelamento do formidável pacote tecnológico andino. Ou seja, que quase todos os conhecimentos, formas e processos tecnológicos e científicos que possibilitaram o êxito da construção de uma alta civilização nos trópicos, passaram sistematicamente a ser destruídos e não utilizados. Os sábios que sabiam ler os quipus (sistema inca feito com diferentes tipos de nós miúdos em cordas gigantescas), os astrônomos e matemáticos cujos conhecimentos permitiam previsões quase perfeitas, fato que permitiam colheitas abundantes e possibilitavam também a orientação de viagens marítimas com sucesso, até extracontinentais, os agrônomos que em sofisticados campos experimentais reproduziam todos os climas do império dos incas para saber quando, como, onde e o que semear, os engenheiros que com canais traziam a água desde os cumes dos Andes (às vezes desde 6.000 metros) e construíam o maior sistema de vias da era pré-colombiana mundial, os arquitetos que construíam cidades no pico das altas montanhas e na Amazônia (como Machu Pichu}, os tecelões que experimentando com fibras, lãs, tintas e técnica conseguiam fazer tecidos que até hoje surpreendem pela sua perfeição etc., etc. Quase tudo isso foi destruído.
Esses homens, coisificados na depreciativa e genérica designação de “índios” criada pelos ocidentais, foram submetidos a trabalhos vis e aniquilados. Com eles foram muitos segredos que os sábios amautas transmitiam, para a classe dirigente, de geração para geração. Era impossível, para a arrogância de analfabetos como Pizarro, imaginar que esses “índios” podiam ser sábios. Pouca coisa se salvou. Por exemplo, é fato conhecido que na história da agricultura mundial, a área andina (e também a região que se estende entre a metade sul do México até a Costa Rica) tem um papel de primeira ordem. Das 155 plantas nativas domesticadas pela população andina pré-colombiana (provavelmente, ninguém no mundo domesticou tantas plantas, v. Brack Egg), algumas chegaram até a Europa e se expandiram pelo mundo: batata, batata doce, milho, feijão, tomate, mandioca, cacau, amendoim, abacate etc. Alguns desses produtos, quase simultaneamente, foram domesticados em outras partes de nosso continente, principalmente na região da América Central e México, e por isso falaremos da batata.
É difícil imaginar a sorte da população de grande parte da Europa sem ela. Sem a batata, a Alemanha, a Rússia e o Norte da Europa, provavelmente, não teriam gerado a massa crítica populacional necessária para entrar na industrialização (v. McNeill). E desse imenso pacote tecnológico, feito a partir de um paradigma diferente do ocidental, e que por isso considerado inútil, pouquíssimas outras coisas se salvaram. Mencionemos apenas outras duas. As necessidades da expansão capitalista mundial recuperaram em massa, na metade do século 19, a quinina e o guano. A primeira é um remédio eficaz contra a malária. Foi a cura para os construtores que, finalmente, com o trem, tornaram possível a abertura dos continentes tropicais até seu centro. A segunda, veremos rapidamente depois.
A idéia dos grandes conquistadores, simbolizados por Pizarro, ignorantes e por isso arrogantes, de que tudo que prestasse teria de vir da Europa, foi determinante para congelar o pacote tecnológico andino. A conclusão eurocêntrica de que não é possível a civilização nos trópicos, provavelmente, começou dessa maneira. A pouca tecnologia andina que se salvou, abandonada à sua miserável sorte, congelou seu processo de desenvolvimento para poder sobreviver. Congelada (por extensão, junto à tecnologia das outras culturas e civilizações americanas, asiáticas e africanas conquistadas) ela, que funcionava em seu meio (os trópicos), foi, ao mesmo tempo, violentamente substituída pela ocidental, que nunca funcionou simplesmente porque não estava em seu habitat. Assim foi como se obteve a “arrogante” conclusão eurocêntrica já citada. O correto seria dizer que o paradigma tecnológico do Ocidente foi incapaz, até hoje, de criar civilização nos trópicos (v. Lumbreras). A prova é a destruição e arraso sistemático feito pelo Ocidente a partir do século 16 de homens, povos e territórios gigantescos na América Latina, Ásia, África e Oceania. E regressando a Lima, no processo de congelamento da tecnologia andina, essa cidade desempenhou um papel fundamental.

http://www.apropucsp.org.br/apropuc/index.php/revista-puc-viva/48-07-500-anos-da-chegada-dos-europeus/1873-lima-na-historia-da-america-latina-

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